A criação do mundo


Solnado

Apenas para que fique registado, o perfil de Raul Solnado que fiz para a edição de hoje do "Jornal de Notícias":


Do berço à idade da sabedoria
fez rir como quem quis fazer o bem

Fez da dor física a primeira gargalhada que provocou, não passava então de quatro anos de Raul, Solnado pelo pai, Almeida por banda da mãe que jamais conheceu, morta dias depois de o largar no mundo: "A maior tristeza da minha vida". Pois foi esse garoto, em tronco nu no pátio de casa, na lisboeta Madragoa, que não conteve a aflição quando uma pomba lhe cravou as unhas no ombro: "Doeu-me tanto que dei um grito: 'foda-xe!'. Então, ouvi uma tremenda gargalhada dos amigos do meu pai. Ele pôs-me de castigo, mandou-me para o meu quarto. Era a minha primeira perplexidade. Tenho êxito, faço rir e sou castigado e vou preso? Que mundo é este onde cheguei?".

Tal estreia prenunciava várias coisas, com excepção do caminho fácil e brejeiro que nunca trilhou ("Tenho pena do público que se ri dos palavrões. Tenho imensa pena de um cómico que precisa de dizer palavrões para provocar o riso"). Prenunciava, claro, notável habilidade para espalhar boa disposição, materializada numa carreira que ultrapassou o meio século, mas também a alma sofredora que há em cada grande cómico, espécie rara numa floresta de humoristas inconsequentes: "Nós temos de ver o ridículo com uma lupa muito grande, e isso magoa".

Várias eram as regras de ouro de Raul Solnado, no que respeita ao ofício de fazer rir - em que não se esgotava o seu mérito de actor, basta recordar o chefe de brigada Elias Santana a que deu vida em "Balada da praia dos cães", de José Fonseca e Costa. Regras que podiam dizer muito do carácter deste homem, como a de nunca fazer humor com os fundamentos da democracia ou com a figura do presidente da República, pelo que esta representa.

Tal não o isentou do turbilhão de equívocos em que tantas vezes navegou o Portugal revolucionário. Como o próprio contava, a participação no celebrado programa "Zip Zip" valera-lhe, entre os últimos acólitos do Estado Novo, o rótulo de perigoso esquerdista. Quando se deu o 25 de Abril, estava na Roménia, apercebendo-se aí das misérias do regime de Ceausescu, que o levavam a rejeitar assumidamente o comunismo, logo lhe sendo grudado outro rótulo. Chegou a estar inscrito no PS, durante dois anos, e desvinculou-se em 1976, aprovada que estava a Constituição. Acreditava que os actores não devem envolver-se em actividades partidárias e, na realidade, a única militância que não abandonou foi a que o vinculava ao Clube de Futebol "Os Belenenses".

Não são detalhes desses, todavia, que fazem de Raul Solnado uma presença quase genética em gerações de portugueses. Dos que o viam nos palcos ou na televisão, dos que o ouviam na rádio ou nos discos de 45 rotações, virados à pressa para não perder a continuação de histórias como a da "Guerra de 1908", texto que ele traduziu de um original espanhol, sem fazer grandes alterações, mas que lhe estará sempre associado no imaginário do grande público.

Solnado, "fábrica de rir", assim ele mesmo assumiu, só seria palhaço no sentido nobre dado pela ópera de Leoncavallo ("ri da dor que te envenena o coração"). Não porque tenha tido uma vida de sofrimento - foi "dura mas saborosíssima", disse, ao fazer 79 anos -, mas porque foi protagonista de uma existência em nada superficial. Porque quando queria fazer rir tinha preocupações sociais, mesmo que nem sempre fossem muito evidentes. Pela profundidade do que dizia, em entrevistas, o Raul exterior às personagens, pela grandeza de projectos como o da Casa do Artista, a que se lançou com alma a par de Armando Cortez, outro grande actor remetido para os palcos da memória.

O Raul da maturidade ainda seria, na essência, aquele menino magoado pela pomba. Tal como seria o actor que trabalhava feito doido em início de carreira, chegando a participar em 21 espectáculos nos quatro dias de um qualquer Carnaval. Tal como seria aquele homem que protagonizou dois dos mais revolucionários momentos da televisão portuguesa ("Zip Zip" e "A visita da Cornélia"). Mas era mais do que isso. Dele exalava serena e terna simpatia, mesmo quando falava da morte, dizendo que nunca quereria morrer em palco e advogando em favor da eutanásia, pelo direito de cada um a optar, com lucidez, pelo fim do sofrimento.

"Não quero que ninguém intervenha entre mim e Deus", dizia, vincando as peculiaridades de uma religiosidade "profunda", de que o palco seria um dos templos essenciais. Solnado, o primeiro em Portugal a fazer este tipo de comédia a que se chama "stand up". Sozinho entre a cortina e o público que explode em aplausos: "É a felicidade recompensada".

Sim, estou vivo

Se ainda alguém ficar perplexo ante o estado de abandono a que chegou este blogue, que nunca teve a dinâmica dos que o precederam, agradeço que compreenda a mais simples das causas: não tenho tido pachorra para escrever aqui; não me apetece, e isso não tem necessariamente significado. Mas, para que a casa não caia de podre, deixo uma pequena experiência, feita com fotos que por cá tinha.

Campeões, what else?...


Sendo coisa comum sermos campeões, a única novidade está nisto das redes sociais. Tive de assinalar a vitória no Twitter e no Facebook antes de cumprir a praxe de colorir o blogue de azul e branco.

Um mito desfeito

Trinta e tal anos mergulhado em francesinhas, passe o exagero inspirado pelo incontornável molho, e só hoje me decidi a curvar os joelhos sob uma das cinco mesas do Bufete Fase. Para os não iniciados, refira-se que o estabelecimento, asseado cubículo em Santa Catarina, junto à Fontinha, pouco mais serve além do tripeiríssimo petisco, por sinal regado por esplêndida cerveja de pressão (Sagres, quem diria!). Aos mesmos se adiante que uma aura mítica envolve há muito as francesinhas que ali se fazem e comem, pelo que há quase sempre uma insuportável fila de espera na rua. Porém, desde sempre torço o nariz quando alguém rotula isto ou aquilo de "o melhor", no caso "as melhores francesinhas do Porto", evitando dispensáveis desilusões. À francesinha do Fase, mesmo admitindo que não é má de todo, aponto vários defeitos, não só no que respeita ao molho, com excessivo gosto a tomate, como ao recheio: a salsicha fresca, soube depois que porque a assam, em pouco se diferencia da linguiça, que, adiante-se, não é da qualidade apropriada para a francesinha; misturar bife (o pecado capital) com carne assada não faz sentido, devendo apenas usar-se uma das opções, sendo a segunda claramente preferencial; faltam outras carnes que complementem o sensaborão fiambre; o pão, que deve ser tostado para conferir firmeza ao todo, está ali quase esturricado, esfarelando-se ao contacto com o garfo...

Não adianta. Se me perguntarem quais as melhores francesinhas, terei dificuldade em responder, mas nunca apontarei as do Bufete Fase. Em termos de recheio, voto nas da Cufra II (Avenida da Boavista), quanto ao molho selecciono o do Chamiço (Rua da Constituição), acrescento as do Convívio (Rua de Gonçalo Sampaio - onde como mais, apenas por ser sítio frequentado por um grupo de amigos), somo as da Regaleira (Rua do Bonjardim - valorizando a tradição de ali terem as francesinhas sido inventadas) e finalizo com as do Pontual (Rua do Almada - que pecam pelo molho, mas ganham pela fauna que por ali pára, reminiscência do perdido Café Luso). Muitas outras surgiriam na lista à frente das do Bufete Fase, apesar de tudo infinitamente melhores do que a que há muitos anos me serviram em Guimarães, insuportavelmente doce por causa do ketchup com que confeccionavam o molho.

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"Ai de mim! Estou tão velho e tão cansado! Li todos os livros do Mundo, aprendi todas as coisas que é possível aprender, conheço todos os mistérios da vida e da morte. Mas tudo o que sei é inútil e silencioso, sem amigos e sem ninguém com quem conversar, porque as pessoas têm medo de mim e não se aproximam, temendo que eu conheça os seus segredos e não podendo suportar isso. Até morrer me está vedado, porque nem mesmo a Morte, com os seus mil disfarces, me pode surpreender!"

Manuel António Pina, História do Sábio Fechado na sua Biblioteca

Nem sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo, como proclamava Ricardo Reis, nem aquele que vive irremediavelmente entranhado nos livros. Abençoada ignorância que permite que as pessoas de mim possam aproximar-se, tornando-me menos velho e mais descansado quando o calendário dá a cambalhota deste três de Abril. Pela amizade me chegou hoje às mãos, logo após a meia-noite, um livrinho lindíssimo ainda com cheiro a tinta fresca. Teatro para as crianças que todos devemos saber ser, de onde saltou o textinho que este post encima, aparentemente feito à medida para que eu possa agradecer aos que de mim se têm lembrado à passagem do quadragésimo segundo aniversário, tornando-me mais vivo e mais sábio.

Vamos lá ver para que serve isto

Que vantagens haverá em publicar no blogue através do Windows Live Writer? Nenhumas, suponho, mas apeteceu-me experimentar.

Em greve

Hoje faço greve – uma greve que me recusei a sufragar – sem estar apoquentado com os resultados práticos do protesto, que não serão muitos. Faço-o contra a injustiça de um processo sumário que põe na rua 119 colegas. Faço-o porque acho ignóbil eleger negociadores e representantes, contar com eles ao longo de todo o tempo e deixá-los sozinhos na hora da verdade. Faço-o porque não aceito a mais perversa forma de medo, expressa em construções intelectuais justificativas que servem, apenas, para que esse medo se esconda sob espessa mas frágil crosta. Faço-o porque também tenho medo de tudo isto, mas considero que tal é inaceitável em democracia. Faço-o porque eu e todos os outros que mantêm o emprego, mesmo os que hoje estão a trabalhar, por convicção ou por cobardia, somos potenciais dispensáveis, aberto que está o precedente de despedir pessoas sem que o desempenho empresarial verdadeiramente o justifique. Faço-o porque, sendo jornalista, não abdico do meu dever de reflectir sobre os assuntos. Faço-o porque, sendo jornalista, não encontro outra forma de honrar o papel que a sociedade me atribui. Faço-o porque pouco me resta, na vida, além de princípios e convicções. Faço-o porque não suportaria ter vergonha do meu nome.

Duas bolas no mapa

Se está no futebol a essência do que é patriótico nos dias que correm, nada mais havendo que encha de bandeiras as varandas como de colchas em dia de procissão, também na bola encontraremos o que resta de combatividade a uma sociedade que parece acomodada. Só aí ouvimos uníssonos urros tribais, só aí vemos gente que, de emblema em riste, transfere para os relvados rivalidades que tocam todos os outros aspectos da vida. Em dia de F. C. Porto-Benfica, como hoje, vem à tona uma rivalidade que muitos, de ambos os lados, consideram desprovida de sentido. Treinador que vista de azul e branco sabe que perder com os que de vermelho jogam, em casa, pode ser pior do que deixar escapar o campeonato. É isso importante? Não: é fundamental.

Pequeno é o país, mas muitas são as realidades que nele coexistem. Porto e Lisboa, desde que nasceram e à medida que cresceram, cumpriram destinos diferentes, mas o rumo administrativo tomado pela História ditou dependências que no Norte são mal aceites, porque consideradas excessivas. E porque contestadas ao longo de gerações e de séculos. Desde muito antes de haver futebol.

Comparar as duas cidades é, mais do que um exercício complicado, algo que faz pouco sentido, atendendo a que nunca ambas evoluíram em igualdade de circunstâncias, primeiro pelos ditames de uma evolução natural, digamos assim, depois por razões de Estado, se assim podemos dizer. Mas as discrepâncias entre elas ajudam a perceber o que os pontapés na bola simbolizam. Os indicadores mostram com clareza que a capital atrai. Pessoas, empresas, investimentos, recursos. Não necessariamente por estratégias do Sul, como diz o discurso populista, mas porque o país funciona assim.

Indo aqui ao lado, a essa Espanha em que muitos querem ver uma identidade colectiva paralela à nossa, temos o exemplo da rivalidade entre Madrid e Barcelona, também decalcada na relação entre as principais equipas de futebol dessas cidades. Mas é um exemplo que em nada reflecte o caso português. Barcelona nasceu e cresceu como importantíssimo porto do trato mediterrânico, no coração de uma região que sempre viveu à margem das Castelas (à Catalunha correspondia, no tempo de Carlos Magno, a Marca Espanhola, zona-tampão de defesa do império, e nunca essa influência dos francos se perdeu). Enquanto capital, Madrid é a invenção de um outro império, o de Filipe II (primeiro do nome em Portugal), que para ali mudou a corte em 1561. Uma e outra seguiram os respectivos rumos, transformando-se em grandes metrópoles. Tal como cá? Não.

Pelas condições naturais, isto é, pelo extraordinário porto natural que é o estuário do Tejo, Lisboa era, na Idade Média, a única cidade cosmopolita e de dimensão europeia no reino, enquanto o Porto era um bem menor burgo que, embora mantendo desde cedo ligações comerciais ao exterior, designadamente ao Norte da Europa, crescia a um ritmo muito mais compassado. Se já assim era, muito mais passou a ser com o Estado moderno, desenhado ainda num período tardo-medieval e solidificado com todas as letras no tempo d'El rey D. Manuel, o primeiro, senhor absoluto da pimenta, pai formal do centralismo português: "Mas um Estado forte, poderoso, rico e centralizado, servido por um numeroso funcionalismo dedicado e fiel, não é senão dificilmente compatível com uma ampla autonomia municipal: e assim, os municípios portugueses, que no período medieval tinham gozado da mais vasta autonomia administrativa e financeira, viram-se severamente limitados nessa autonomia pela intervenção do poder central manuelino" (Diogo Freitas do Amaral, in "D. Manuel I e a construção do Estado moderno em Portugal").

Assim continua a ser, em boa parte, num país que rejeitou a regionalização. Se em Espanha (lá voltamos nós) as autonomias são garante da unidade de uma Nação heterogénea, por cá, em 1998, foram vistas pelo eleitorado como potenciais veículos para a desagregação da unidade nacional (e não deixa de ser curioso, ao rever os resultados do referendo, notar como a mudança administrativa foi rejeitada a Norte, onde o conservadorismo se sobrepôs ao inconformismo).

A cidade do Porto será, apenas, a face mais visível desse inconformismo. E a que mais o cultivou, porque teve forte afirmação, dos tempos do trato internacional do vinho àqueles em que estava na vanguarda da dinâmica industrial das regiões vizinhas. Mas essa face vai-se perdendo. Os bancos portuenses desapareceram e surgiram outros que, com sede no Porto, é em Lisboa que existem de facto. Empresas mudam-se para a capital. Homens de negócios buscam a proximidade do poder, o verdadeiro, isto é, o central. Pessoas estabelecem-se junto ao Tejo, ou nos arrabaldes, porque aí terão mais possibilidades de progredir em carreiras profissionais. E quase toda a informação que o país consome é produzida em Lisboa. Dos grandes jornais portuenses, só o JN mantém a estatura, e a televisão, provavelmente o mais influente molde das personalidades deste tempo, emana quase totalmente da capital: onde estão os comentadores, os notáveis, os famosos e toda a substantivação imaginável, que se promove mutuamente numa espécie de circuito fechado, em que o país exterior entra de vez em quando.

Confrontar cidades passa, evidentemente, por dizer que uma é muito maior do que outra. Mas sê-lo-á assim tanto? Segundo estimativas do Instituto Nacional de Estatística (o próximo recenseamento geral da população só ocorrerá em 2011), a população da Grande Lisboa, no fim de 2006, seria de 2 019 529 pessoas, enquanto no Grande Porto habitariam, nesse momento, 1 279 923. A diferença é significativa, certo, mas fica claro que o Porto e concelhos circundantes constituem um aglomerado urbano de significativa dimensão, que, porém, não consegue garantir às pessoas que o habitam qualidade de vida que se aproxime da que há na capital, onde os salários, segundo é recorrentemente noticiado, são superiores em 50% aos do resto do país, onde o poder de compra dos cidadãos é o triplo do que têm os portuenses, que estão no coração da região do país mais penalizada pelo desemprego.

Quase metade do crédito concedido pela banca é injectado em Lisboa, enquanto o Porto fica pelos 11,9%. É outra dinâmica, já se vê. Segundo elementos da Área Metropolitana do Porto, do quarto trimestre de 2004 ao segundo trimestre de 2006 foram constituídas na Grande Área Metropolitana de Lisboa 14 594 sociedades, mais do dobro das que se formaram na Grande Área Metropolitana do Porto (6837). E a dimensão das empresas é totalmente díspar, como se vê pelo capital social das sociedades constituídas: 1011 milhões de euros em Lisboa, grosso modo, contra 223,5 milhões de euros no Porto. Também no balanço entre sociedades constituídas e dissolvidas o Porto está em desvantagem. E o crescimento patente no número de fogos construídos - de 2004 a Fevereiro de 2007 - confirma a regra: 41 212 contra 19 342. Que mais? Lisboa (falamos ainda das grandes áreas metropolitanas), onde se vai concentrando a população mais qualificada, levantou das caixas multibanco, de 2004 a 2007, perto de 18 260 milhões de euros, enquanto o Porto tirou das paredes 8,4 mil milhões (lembram-se da diferença da população?).

Iríamos por aí fora, comparando indicadores. E se é claro que o caminho do Porto deve ser trilhado olhando para o futuro, não para a capital, torna-se notório que este é um país muito desequilibrado (e o que dirão as regiões penalizadas do Interior!). Excepto, pois, no futebol dos últimos 30 anos. Na pujante cidade de oitocentos, onde se fizeram revoluções, onde a República foi proclamada com quase vinte anos de antecedência, foi a penhora de uma peça de louça sanitária, no velhinho Estádio das Antas, que juntou o povo indignado na rua. Talvez porque as causas vitoriosas dêem mais força a quem as defende.

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Texto publicado na edição de hoje do "Jornal de Notícias"

nota: às vezes, sinto que o que se escreve deve ser munido de legendas explicativas, pois as pessoas não vão além de leituras epidérmicas moldadas por aquilo que já pensam sobre os assuntos; enfim, sei que os leitores que cá vêm não serão desses.

...

Os jornalistas morreram antes dos jornais.

Do silêncio

Se como os olhos são os blogues espelhos da alma, há momentos em que mantê-los calados pode ser uma estratégia de sobrevivência. O que há a dizer sobre os dias que correm, no pequeno universo em que me movimento, exige ponderação e solidário sentido de responsabilidade. Dizer o que me vai na alma, usando o espontâneo registo da blogosfera, é perigoso, não obstante todos os perigos andarem aí com rédea solta. Peço uma vez mais desculpa pelo silêncio*, aqui, pois outros lados existem onde a minha voz poderá fazer falta e não posso permitir que fraqueje.

* às poucas pessoas que ainda me honram por cá passando

Perspectiva (hips)

Entrei de gatas em 2009, o que poderá significar que conseguirei caminhar verticalmente nos próximos 364 dias, vida havendo e saúde não faltando (em itálico, pois o inconsciente fez-me citar, de cor, uma expressão lida, algures, nos cadernos do Saramago). Talvez me convença, entretanto, que o meu estômago já não tem idade para ser tratado como um alambique.

A preguiça e outras distracções

Dos vários expedientes para disfarçar os momentos de desinteresse pelo blogue ou pela blogosfera, muitos deles já por aqui experimentados, talvez o mais honesto seja reflectir sobre o que isto é ou sobre o que significa. Significa tudo e nada, pois tudo o que é a nossa vida é nada no esmagamento implacável dos tempos. E se um colega, hoje, criticando a letargia d’A Criação do Mundo, aconselhava o recurso despudorado a vídeos do YouTube – “Mete lá qualquer coisa do Stravinsky” –, a audição, há pouco, da entrevista dada à Antena 1 pela Leonor, uma dessas pessoas que ganham forma na blogosfera e que nos surpreendem em situações destas, porque têm voz e existência (sim, claro, todos temos, isto é só para dar um toque poético à prosa, queiram pois desculpar), ouvi-la, dizia eu, recentrou-me numa ideia que tenho desde que cheguei a este universo paralelo, no Verão de 2003: por mais pessoal que um blogue seja, ou até intimista, na justa medida daquilo que entendemos partilhar sem que nos sintamos devassados, destina-se a ser lido, pelo que pressupõe um sentido de responsabilidade idêntico ao que preside à escrita num jornal nacional, que, como sabem, é o meu modo de vida.

Longe vai essa febre nascida em 2003 e, sinceramente, já não há pachorra para andar por aqui a comentar tudo e mais alguma coisa. Também isso, associado aos afazeres e canseiras do “mundo real”, ajuda a que o blogue ganhe ferrugem nas engrenagens e teias de aranha nas alavancas. Mas é a noção do leitor, a ideia de que não vale a pena dar-lhe as côdeas ressequidas de um pão desmiolado, que mais contribui para o silêncio. Isso, claro, e a preocupação de não traçar da vida apenas o negro retrato que dela por vezes fazemos, enganados que somos pelo torpor em que nos põe a pusilanimidade com que, tantas vezes, somos obrigados a conviver e, pior, a interagir.

Contava-me há dias um amigo, cuja identidade omitirei por ser um escritor sexagenário de renome nacional (se ele ler identifica-se), que havia, no manual único de filosofia que teve de engolir no liceu, pérolas como a que cito de cor: “A distracção é uma característica dos sábios, dos inocentes e dos basbaques”. Nalguma categoria hão-de colocar-me os leitores, tão distraído de vós tenho andado.

Fracas letras

Ao ler

"Estas pegadas, invisíveis a olho nu, haviam sido registadas pela película; a verdade é que o fraco da lâmpada do flash tinha revelado a sua presença com uma exactidão extraordinária.",

fiquei de tal modo atarantado que não descansei enquanto não dei com isto:

"The prints, not noticeable to the naked eye, registered on film; indeed, the delineating glare of a flashbulb had revealed their presence with superb exactness."

Como terão reparado, encalhei na passagem "o fraco da lâmpada do flash", milagrosamente extraída do original "the delineating glare of a flashbulb ". O período em português integra a versão que tenho em mãos de "A Sangue Frio" (In Cold Blood), de Truman Capote, que decidi ler com verdadeiros olhos (o primeiro contacto com o texto havia sido de raspão, há sei lá quantos anos), ao dar de caras com um exemplar que para aqui tinha. Mais do que um novo episódio da fatalidade "traduttore traditore", noto a confirmação de que a cavalo dado há que olhar o dente. Explicando: o volume que tenho em mãos é oferta de uma revista e, sendo a segunda vez que me atrevo a ler um livro desses de promoção, volto a verificar que a cultura para o povo é feita com o mesmo esmero com que se enchem sacos de batatas. A primeira experiência havia sido o "Moby Dick", de Herman Melville, aparentemente vertido para português por um programa de tradução automática e pomposamente resguardado com capa dura. Bom para calçar móveis ou para acender lareiras.

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Acabo de escrever o post e vejo que, logo a seguir, "he was scheduled for a second interview, at which time he was to be given a polygraph test" dá lugar a "foi-lhe marcado segundo interrogatório, durante o qual teria de fazer declarações por escrito".

Assim sendo, há que identificar a tradutora, uma senhora Maria Isabel Braga, que com tal competência fixou o texto para a "Livros do Brasil", que o cedeu para que fosse impresso posteriormente pela Abril/Controjornal, de forma a que o catastrófico resultado pudesse ser distribuído com a "Visão".

Mesmo agora

Foi mesmo agora, Mãe, há um ano exacto. Sou aquele menino que quis parecer homem ao teu lado, para suavizar a partida, mas que ainda hoje procura o teu colo nos silêncios profundos de cada dia.

Serviço público de televisão, my ass

Assim é: eu não queria blogar coisa alguma. Vi há pouco um programa sobre touradas, mera propaganda dessa actividade, que me deixou furioso, ao ponto de ligar aqui a engenhoca para escrever ao provedor do telespectador da RTP. Mais fiquei ainda, porque o sistema de envio de queixas não está a funcionar, terei de tentar novamente amanhã. Mas apetece-me pôr aqui a tirada final da exposição, que, assim à primeira vista, nem está mal: "(...) de uma ponta a outra, a apologia da masculinidade primitiva, que se confunde com o suposto heroísmo de enfrentar a morte num ritual público, quando os verdadeiros progresso e aperfeiçoamento da humanidade sempre dependeram de outra bem mais ousada atitude: enfrentar a vida."

É verdade, tenho um blogue...

Do que um tipo se lembra! Andava esquecido do blogue (assim continuo, é verdade, sem qualquer razão especial) e vim cá espreitar. E porque de lembranças falo, não é que hoje dei comigo a ver, na RTP Memória, o Festival da Canção de 1980? Para isso e para transmitir vitórias do benfica serve esse canal, mas estas últimas não me interessam minimamente, como saberão os leitores. Nem o festival, é certo, se bem que esta edição desperte em mim outras recordações. O espectáculo marcou a estreia da cor na televisão portuguesa. Ganhou o grande José Cid, com aquela coisa do "Adio, adieu, auf wiedersehen, goodbye", mas isso não é relevante. O meu interesse pelo festival, além dos arcaísmos televisivos que na altura se assemelhavam a modernidade, é o ter-me lembrado que durante algum tempo, todos os dias, ficava especado a ver aquelas imagens numa montra, quando ia a caminho do liceu (o António Nobre, esclareça-se), pois passava pelo então representante no Porto da Sony. Ora, nesse tempo em que poucos tinham, em casa, tv a cores, o festival era ali repetido ciclicamente ao longo do dia. Já antes tinha visto televisão a cores, em Espanha, mas o sistema deles era diferente e não pareceu, então, muito agradável (além do mais, lembro-me de não ter gostado de ver o Baretta - quem se lembra?... - a falar castelhano). Ah, e aquelas placas horrendas, tipo arco-íris, que alguns punham nos ecrãs a preto e branco?... Enfim, ao ver hoje esse festival de há 28 anos pensei que já começo a ser um pouco antigo. E daí?...

Cá estou

Além do apuro da linguagem usada nas redacções, espécie de matriz identitária desses locais, são muitas as frases inventadas ao longo dos tempos para retratar o trabalho ou o ambiente. Coisas como "uma redacção é um bordel onde as putas se comem umas às outras". Aqui vou eu, de regresso após duas semanas de aproximação a férias.

Dilema inexistente antes de ir dar ao dente

escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo? escrevo? não escrevo? blogo? não blogo?

(ainda não, vou mas é jantar qualquer coisa)

Plantel reforçado


Sim, este é um post sobre futebol, o que, neste país, equivale a dizer que é sobre o F. C. Porto. Sai Quaresma, bem mais preparado para a aventura internacional do que quando foi para Barcelona, entra Pelé, nascido no Porto e pronto para ter no Dragão um protagonismo que no Inter ainda não fora possível. O grande êxito deste médio defensivo, em Milão, foi a conquista de Debora Salvalaggio (na foto), aqui exposta em preparos não demasiado indecentes, pois o interesse é estritamente noticioso. Não encontrarão neste blogue cedências ao facilitismo mercantilista dos media, assente na exploração selvagem e machista do corpo feminino.




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